
Por Luiz Guilherme Ribeiro Barbosa
Professor de Língua Portuguesa e Literatura
Colégio Pedro II
Sugestão de atividade para o Ensino Médio
Quando professores leem literatura não costumam se colocar no lugar dos escritores. A tarefa de ler, ainda mais quando associada ao trabalho, envolve interpretação, que muitos entendem como desvendar sentidos implícitos do livro. Porém, mesmo não sendo escritores, é possível que a gente, professoras e professores, se desloque um pouco e possa se ver como leitores brincantes, ou seja, leitores que podem escrever. Quando, ainda mais, conseguimos levar para a sala de aula esse universo de brincadeiras que o escrever proporciona, temos a oportunidade de conhecer os estudantes como sujeitos, com suas memórias, seus medos e desejos. Foi o que pensei quando li Minha casa é onde estou, da escritora italiana Igiaba Scego.
Esse livro, que foi publicado no Brasil em 2017, não conta exatamente uma história, narra uma geografia. A cada capítulo, conhecemos um lugar público da cidade de Roma, um teatro, uma praça, uma rua. Acontece que em cada um desses lugares Igiaba, seu pai, sua mãe ou seu tio viveram cenas inesquecíveis de suas vidas. Mais do que isso, esses lugares de Roma são cenário da vida de uma família de origem somali, na África oriental, que chegou exilada à cidade italiana em 1969, com as memórias e os valores de seu território de origem.
Um pequeno livro traça muitas linhas sobre o mapa da cidade. Igiaba nasceu em 1974 – mulher preta retinta e europeia, revela, com as memórias romanas de sua família, que a África está presente na Europa, que a cidade de Roma é habitada por culturas do mundo, que uma cidade é formada por caminhos que dão em muitos países.
Se a gente acompanhar a narrativa, Minha casa é onde estou foi escrito de acordo com um método que relaciona saberes geográficos e saberes históricos. Realiza uma cartografia das memórias. Igiaba tem a ideia do livro num jantar de família com o irmão e o tio. Ela percebe que as memórias que eles têm da Somália são imprecisas, eles discordam do que lembram da cidade de Mogadíscio, mas cada um acredita muito naquilo que lembra. Igiaba, que raramente esteve na Somália, decide então criar um mapa das memórias olhando para a cidade em que ela nasceu: Roma. Abre o mapa da sua cidade, compra post-its coloridos, escreve neles as lembranças e depois os cola nos lugares. É aí que Igiaba faz uma importante descoberta!
Os monumentos nas praças, os nomes das ruas, a história da cidade têm muito a ver com a história da colonização europeia. E a vida de Igiaba também! Afinal, ela foi nascer ali porque o país dos seus pais, que tinha sido colonizado pela Itália, sofreu um golpe de estado durante o processo de descolonização. Assim, o mapa da cidade de Roma guarda a memória da cultura da Somália, porque a sua família vive em Roma e ela nasceu ali. E aí, se a gente pensar desse jeito no Brasil, em cada escola em que trabalhamos habita centenas de escritores, cada um com seu mapa de memórias da cidade, que pode ser desenhado com base no método encontrado no livro de Igiaba Scego.
Primeiro, escolher um lugar público da cidade que guarde alguma memória da família. Pode ser uma esquina, um beco, uma estrada. Depois, descrever esse lugar. Olhar para ele com olhos de memória: as cores, o tamanho, a função. Por fim, narrar o que aconteceu ali. É possível que apareça uma morte, é bem possível que a cena seja violenta. Afinal, vivemos num dos países mais violentos do planeta, e nesse país a escola precisa, em primeiro lugar, acolher seus estudantes. E eles chegam na escola com suas memórias, não deixam elas do lado de fora.
O último passo dessa oficina literária, que pode interessar a professores de ensino médio de Geografia, História e Sociologia, Português e Línguas Estrangeiras, é o mais delicado: essas histórias precisam ser lidas, e nem sempre sabemos como ler os textos dos nossos alunos, a não ser para dar uma nota, corrigir uma frase, sugerir uma alteração. Eles são nossos escritores e, por mais difícil que pareça, dar um passo em direção a oficinas literárias pode mudar nossa relação com as turmas, as famílias, a comunidade escolar.